Acabado de chegar à cidade, tendo que alugar casa e mobiliá-la, o sistemático Padilha, sempre meticuloso em seus planejamentos, com pouco dinheiro em banco, inaugurando a vida independente, andava ocupado com seu orçamento. Eram notas e mais notas em seu caderno. Contava e recontava se o salário que receberia no novo emprego supriria suas necessidades. Via quanto gastaria no café da manhã, no almoço, no jantar... A gasolina pro carro... O valor do aluguel... E este foi o maior vilão. Para o primeiro mês, percebeu que já tinha se esgotado o que reservara. Sem conhecer uma única alma viva sequer naquelas bandas que pudesse o servir como fiador, precisou adiantar logo dois meses ao locador do apartamento, modesto, porém, localizado no bairro mais nobre da cidade. O corretor, um sujeito baixo e barrigudo, com uma cara de desconfiado queria lhe cobrar logo três como garantia, mas aceitou os dois, compadecido pela choradeira que simulou o Padilha.
- Vamos lá seu Pereira... - dizia ele ao corretor - não pode me ajudar? Nenhum outro apartamento me agradou tanto, se pudesse, eu dava os três, não quero mesmo perder essa oportunidade, mas também não posso ficar sem comer esse mês; e é a isto que vai me submeter.
De fato, muito lhe agradara o pequeno quarto, sala, cozinha e banheiro. Apaixonou-se por ele ao ver a fachada e amou-o ao ver o interior. Era, não obstante simples, deveras belo. Recentemente pintado, como toda frente do condomínio, aparentava não mais que três anos, embora contasse mais de dez. As velhas janelas de madeira delatavam sua idade, divididas em três módulos independentes que giravam deixando sol e vento entrarem, moderadamente, por suas frestas. Parecia ser o único trabalho que teria após comprar o imóvel.
Sim... Já pensava em fazer uma oferta ao proprietário tão logo juntasse certa quantia para dar de entrada e financiar o resto. E começara a imaginar que trocaria as singelas janelas de madeira, por outras insignes de alumínio, de correr, com apenas duas longas partes que o deixassem colocar a cabeça para fora e observar a rua de lado a lado, o que as pequenas frestas não o permitiam, dando não mais que a visão de um cavalo com sua tapa. No entanto, passadas duas semanas, começara a lançar um olhar diferente sobre aquelas janelas. Enxergara seu porte Clássico, com um charme peculiar, inerente as janelas velhas, de madeira, que nenhuma de alumínio, por mais cintilante que fosse, teria. Entusiasta do passado, tê-lo-ia em sua casa, em forma de janelas. Resolveu-se por apenas restaurá-las. E ocupou-se de outro problema, o que aqui nos interessa. Esse, menor; aparentemente, de mais fácil resolução; porém, mais incomodo. O assento da bacia sanitária. Não que fosse feio, ou velho; era duro, machucava-lhe as coxas quando se sentava. E a tampa também tinha seus caprichos e não se sustentava em pé quando assim colocada. Tinha de se ficar segurando-a para que não se urinasse em cima dela e espalhasse a urina pelo banheiro – o que ocorreu ao inexperiente usuário deste sanitário em sua primeira necessidade. Talvez a tampa perfeita para algumas mulheres que se incomodam com o bojo destampado e desentendem-se com seus maridos esquecidos de baixá-las; evitaria muitas brigas de casais; quiçá, esta tampa – para ele, motivo de queixas – teria preservado diversos matrimônios acabados. Mas ao Padilha, não era mesmo mais que um incomodo. Decidiu que trocaria o assento de imediato por outro que não ferisse suas pernas e sustentasse a tampa de pé. Aquele seria compulsoriamente aposentado.
Lembrou-se que na infância costumava freqüentar o banheiro da suíte dos pais por apenas um motivo: um assento que mais parecia uma almofada, tamanho conforto que dava, acomodava-se perfeitamente ao usuário e ainda tinha aquele chiado do ar, escapando quando se sentava, e retornando quando se levantava; como quem desse as boas vindas e depois se despedisse. Não bastasse, era lindo, cinza, diferente do branco de assentos banais; um cinza clarinho, não pesado, com flores em baixo relevo. Seria um destes.
Tendo em vista o baixo orçamento do mês, deu-se aos cálculos. Este mimo havia de ser caro. Como havia de valer a pena. Já via-se sentado nele, e sendo invadido pelas lembranças da infância, quão bons momentos não tivera no banheiro dos pais. Padilha, metido a poeta romântico, amava o passado como um afortunado não sabe amar o presente, ou um cientista o futuro. Sempre teve a certeza de que nascera atrasado. Como não seria feliz sendo contemporâneo de Vinícius de Morais, Noel Rosa; talvez Alvarez de Azevedo; quiçá Bocage; vezes, ia mais longe, até Camões. Saiu revoltado do cinema após assistir o filme que Woody Allen – o qual, até então, admirava – acabara de lançar: Meia Noite em Paris.
- Quem pode ser capaz do disparate de dizer que o presente pode ser tão talentoso quanto o passado? Balela!
Mas Padilha também gostava de viajar apenas em suas próprias histórias de outrora. O tempo que viveu na serra fluminense; a infância na capital do Rio; até mesmo os últimos anos passados em João Pessoa, que há três meses ansiava pelo fim. O presente só podia tornar-se interessante ao tornar-se passado. Vivia envolto em nostalgia, e aquele assento era a própria, materializada.
Não mediu esforços. Tirou um pouco do que reservara ao café da manhã; diminuiria a porção do almoço; privar-se-ia de alguns jantares. Pegou o que já havia guardado para outras compras necessárias, juntou o dinheiro do assento, e lá estava ele à rua; vasculhando cada loja onde pudesse estar escondida sua amada. Olhou vários assentos e tampas oferecidas, de diversas cores, e com outros tantos tipos de almofadas. Nenhuma como a de sua memória, nenhuma cinza, com flores em relevo. Até que encontrara algo parecido. Não tinha as flores, mas aparentava ser bem confortável, e a cor conferia com a ambicionada. Sendo a que mais aproximava-se daquela nostálgica tampa de infância, levou-a. Foi até o carro, guardou-a no porta-malas, e voltou, displicentemente, às ruas da cidade. Aproveitou a ida ao Centro, até então desconhecido, para desvendá-lo e comprar os outros utensílios que constavam na lista feita previamente. Agora caminhava mais descontraído, sem o peso de ter de chegar em casa e sentar-se num bojo desconfortável. Era um homem mais feliz, tão simplesmente pela recente aquisição. Comprou toda lista, objetos banais; em geral, de maior valor; porém, de menor importância que sua donzela que o esperava no carro.
Retornou ao apartamento, retirou as sacolas do carro, subiu as escadas e entrou pela sala que mais parecia um depósito abandonado. As caixas da mudança ainda estavam espalhadas pelo chão - algumas abertas; a maioria, ainda lacradas. Não havia nada que caracterizasse o ambiente como sala de estar, um sofá, um televisor, ou uma mesinha de centro. Tomou-a pela mão e foi ao banheiro onde lá estava a outra, não menos bonita que a nova, mas com suas peculiaridades perversas. Demorou um pouco para descobrir como fazer a troca. Nunca foi dado a trabalhos domésticos; preferia mandar que fizessem. Dizia que era em prol da valorização de cada profissional de sua área, para que estes tivessem de onde tirar seu sustento.
- Imagina se seus clientes comprassem madeira e fossem, eles mesmos, construir seus móveis... - dizia ele ao pai marceneiro, quando este pedia para que lavasse o carro. Ou se os da mamãe lavassem as próprias roupas... Não teríamos mais como sobreviver. Dá o dinheiro que eu levo no lava-jato.
Mas a teoria era mesmo só para fugir da raia. Era preguiçoso quando se tratava de esforço físico e trabalho “sujo”. Gostava de estar entre livros, exercitando o cérebro somente. Mas este era caso urgente, não podia esperar. E acabou revelando-se fácil, nem ao menos necessitava de ferramentas, não carecia pagar um real que fosse pra que o fizessem. Ao cabo de uns quinze minutos lá estava em seu lugar; e ele sentado, sentindo o conforto do novo assento. Queria estreá-lo de fato, ficou ali mais uns minutos e nada.
Foi dormir. Digo que sonhou toda noite com o novo mimo, de modo que ao acordar não teve outro impulso que não o de ir ao banheiro e levantar a tampa que lá se manteve, intrépida, imponente, com todo seu garbo, elegantemente em riste.
Porém, notou que algo o incomodava. Não sabia o que. Mas sentira certo desconforto inesperado, aquela manhã, naquele banheiro; não menor que o causado pelo antigo assento em suas coxas. E, inicialmente, desconfiou que se tratasse de algo errado com novo assento. Mas cuidou ser apenas a resistência que tem o ser humano a novidades, não tardaria a passar.
A noite, de volta do trabalho, enfim iria sentar-se nas almofadas. Entrou em casa, largou a maleta em cima de uma das caixas que tumultuavam a sala e dirigiu-se ao banheiro. Foi um choque. Revelou-se o que o incutiu o desconforto da manhã: Aquela tampa cinza sobre a porcelana branca da bacia era de um desgosto agressivo, rasgava-lhe a íris dos olhos deixando marcas piores que as experimentadas por suas pernas. Era destoante, rompia a harmonia visual entre a louça e o mármore que separava o box. O vaso branco com a tampa cinza era a anti-matéria de sua nostalgia. Só agora observava que, naquela cena recém garimpada de sua memória, louça e assento eram de mesma cor; reinava uma harmonia naquele banheiro de suíte; harmonia que ele quebrara no seu, pondo aquela asquerosidade cinzenta. E percebeu que mais sentiria as sensações de quando criança no banheiro dos pais, num banheiro plenamente branco, de assento duro, porém, harmônico; que num banheiro destonalizado, ainda que de assento cinza almofadado.
Pobre Padilha, virgem de decorações e trabalhos do lar, não sabia que a tampa deve acompanhar a cor do bojo, nunca notara. São dessas coisas, tão óbvias, que se acha desnecessário ensinar aos filhos e estes são obrigados a aprender com o erro. Entrava em um dilema milenar; pensava que muitos outros já cometeram o mesmo deslize e indignava-se por não ter sido exortado. De certo, estes escondiam-se por vergonha do feito. Talvez escrevesse uma crônica sobre o caso – evitaria que outros provassem o amargor que então provava. Voltou o olhar àquela aberração. Não poderia sentar-se ali transgredindo todos os ideais de beleza. Viu-se na velha batalha entre conteúdo e aparência; entre vinho e taça. Retornou tampa e assento antigos a seu lugar e sentou-se. Antes desconforto que feiúra. Antes desprazer físico que estético.
- Vamos lá seu Pereira... - dizia ele ao corretor - não pode me ajudar? Nenhum outro apartamento me agradou tanto, se pudesse, eu dava os três, não quero mesmo perder essa oportunidade, mas também não posso ficar sem comer esse mês; e é a isto que vai me submeter.
De fato, muito lhe agradara o pequeno quarto, sala, cozinha e banheiro. Apaixonou-se por ele ao ver a fachada e amou-o ao ver o interior. Era, não obstante simples, deveras belo. Recentemente pintado, como toda frente do condomínio, aparentava não mais que três anos, embora contasse mais de dez. As velhas janelas de madeira delatavam sua idade, divididas em três módulos independentes que giravam deixando sol e vento entrarem, moderadamente, por suas frestas. Parecia ser o único trabalho que teria após comprar o imóvel.
Sim... Já pensava em fazer uma oferta ao proprietário tão logo juntasse certa quantia para dar de entrada e financiar o resto. E começara a imaginar que trocaria as singelas janelas de madeira, por outras insignes de alumínio, de correr, com apenas duas longas partes que o deixassem colocar a cabeça para fora e observar a rua de lado a lado, o que as pequenas frestas não o permitiam, dando não mais que a visão de um cavalo com sua tapa. No entanto, passadas duas semanas, começara a lançar um olhar diferente sobre aquelas janelas. Enxergara seu porte Clássico, com um charme peculiar, inerente as janelas velhas, de madeira, que nenhuma de alumínio, por mais cintilante que fosse, teria. Entusiasta do passado, tê-lo-ia em sua casa, em forma de janelas. Resolveu-se por apenas restaurá-las. E ocupou-se de outro problema, o que aqui nos interessa. Esse, menor; aparentemente, de mais fácil resolução; porém, mais incomodo. O assento da bacia sanitária. Não que fosse feio, ou velho; era duro, machucava-lhe as coxas quando se sentava. E a tampa também tinha seus caprichos e não se sustentava em pé quando assim colocada. Tinha de se ficar segurando-a para que não se urinasse em cima dela e espalhasse a urina pelo banheiro – o que ocorreu ao inexperiente usuário deste sanitário em sua primeira necessidade. Talvez a tampa perfeita para algumas mulheres que se incomodam com o bojo destampado e desentendem-se com seus maridos esquecidos de baixá-las; evitaria muitas brigas de casais; quiçá, esta tampa – para ele, motivo de queixas – teria preservado diversos matrimônios acabados. Mas ao Padilha, não era mesmo mais que um incomodo. Decidiu que trocaria o assento de imediato por outro que não ferisse suas pernas e sustentasse a tampa de pé. Aquele seria compulsoriamente aposentado.
Lembrou-se que na infância costumava freqüentar o banheiro da suíte dos pais por apenas um motivo: um assento que mais parecia uma almofada, tamanho conforto que dava, acomodava-se perfeitamente ao usuário e ainda tinha aquele chiado do ar, escapando quando se sentava, e retornando quando se levantava; como quem desse as boas vindas e depois se despedisse. Não bastasse, era lindo, cinza, diferente do branco de assentos banais; um cinza clarinho, não pesado, com flores em baixo relevo. Seria um destes.
Tendo em vista o baixo orçamento do mês, deu-se aos cálculos. Este mimo havia de ser caro. Como havia de valer a pena. Já via-se sentado nele, e sendo invadido pelas lembranças da infância, quão bons momentos não tivera no banheiro dos pais. Padilha, metido a poeta romântico, amava o passado como um afortunado não sabe amar o presente, ou um cientista o futuro. Sempre teve a certeza de que nascera atrasado. Como não seria feliz sendo contemporâneo de Vinícius de Morais, Noel Rosa; talvez Alvarez de Azevedo; quiçá Bocage; vezes, ia mais longe, até Camões. Saiu revoltado do cinema após assistir o filme que Woody Allen – o qual, até então, admirava – acabara de lançar: Meia Noite em Paris.
- Quem pode ser capaz do disparate de dizer que o presente pode ser tão talentoso quanto o passado? Balela!
Mas Padilha também gostava de viajar apenas em suas próprias histórias de outrora. O tempo que viveu na serra fluminense; a infância na capital do Rio; até mesmo os últimos anos passados em João Pessoa, que há três meses ansiava pelo fim. O presente só podia tornar-se interessante ao tornar-se passado. Vivia envolto em nostalgia, e aquele assento era a própria, materializada.
Não mediu esforços. Tirou um pouco do que reservara ao café da manhã; diminuiria a porção do almoço; privar-se-ia de alguns jantares. Pegou o que já havia guardado para outras compras necessárias, juntou o dinheiro do assento, e lá estava ele à rua; vasculhando cada loja onde pudesse estar escondida sua amada. Olhou vários assentos e tampas oferecidas, de diversas cores, e com outros tantos tipos de almofadas. Nenhuma como a de sua memória, nenhuma cinza, com flores em relevo. Até que encontrara algo parecido. Não tinha as flores, mas aparentava ser bem confortável, e a cor conferia com a ambicionada. Sendo a que mais aproximava-se daquela nostálgica tampa de infância, levou-a. Foi até o carro, guardou-a no porta-malas, e voltou, displicentemente, às ruas da cidade. Aproveitou a ida ao Centro, até então desconhecido, para desvendá-lo e comprar os outros utensílios que constavam na lista feita previamente. Agora caminhava mais descontraído, sem o peso de ter de chegar em casa e sentar-se num bojo desconfortável. Era um homem mais feliz, tão simplesmente pela recente aquisição. Comprou toda lista, objetos banais; em geral, de maior valor; porém, de menor importância que sua donzela que o esperava no carro.
Retornou ao apartamento, retirou as sacolas do carro, subiu as escadas e entrou pela sala que mais parecia um depósito abandonado. As caixas da mudança ainda estavam espalhadas pelo chão - algumas abertas; a maioria, ainda lacradas. Não havia nada que caracterizasse o ambiente como sala de estar, um sofá, um televisor, ou uma mesinha de centro. Tomou-a pela mão e foi ao banheiro onde lá estava a outra, não menos bonita que a nova, mas com suas peculiaridades perversas. Demorou um pouco para descobrir como fazer a troca. Nunca foi dado a trabalhos domésticos; preferia mandar que fizessem. Dizia que era em prol da valorização de cada profissional de sua área, para que estes tivessem de onde tirar seu sustento.
- Imagina se seus clientes comprassem madeira e fossem, eles mesmos, construir seus móveis... - dizia ele ao pai marceneiro, quando este pedia para que lavasse o carro. Ou se os da mamãe lavassem as próprias roupas... Não teríamos mais como sobreviver. Dá o dinheiro que eu levo no lava-jato.
Mas a teoria era mesmo só para fugir da raia. Era preguiçoso quando se tratava de esforço físico e trabalho “sujo”. Gostava de estar entre livros, exercitando o cérebro somente. Mas este era caso urgente, não podia esperar. E acabou revelando-se fácil, nem ao menos necessitava de ferramentas, não carecia pagar um real que fosse pra que o fizessem. Ao cabo de uns quinze minutos lá estava em seu lugar; e ele sentado, sentindo o conforto do novo assento. Queria estreá-lo de fato, ficou ali mais uns minutos e nada.
Foi dormir. Digo que sonhou toda noite com o novo mimo, de modo que ao acordar não teve outro impulso que não o de ir ao banheiro e levantar a tampa que lá se manteve, intrépida, imponente, com todo seu garbo, elegantemente em riste.
Porém, notou que algo o incomodava. Não sabia o que. Mas sentira certo desconforto inesperado, aquela manhã, naquele banheiro; não menor que o causado pelo antigo assento em suas coxas. E, inicialmente, desconfiou que se tratasse de algo errado com novo assento. Mas cuidou ser apenas a resistência que tem o ser humano a novidades, não tardaria a passar.
A noite, de volta do trabalho, enfim iria sentar-se nas almofadas. Entrou em casa, largou a maleta em cima de uma das caixas que tumultuavam a sala e dirigiu-se ao banheiro. Foi um choque. Revelou-se o que o incutiu o desconforto da manhã: Aquela tampa cinza sobre a porcelana branca da bacia era de um desgosto agressivo, rasgava-lhe a íris dos olhos deixando marcas piores que as experimentadas por suas pernas. Era destoante, rompia a harmonia visual entre a louça e o mármore que separava o box. O vaso branco com a tampa cinza era a anti-matéria de sua nostalgia. Só agora observava que, naquela cena recém garimpada de sua memória, louça e assento eram de mesma cor; reinava uma harmonia naquele banheiro de suíte; harmonia que ele quebrara no seu, pondo aquela asquerosidade cinzenta. E percebeu que mais sentiria as sensações de quando criança no banheiro dos pais, num banheiro plenamente branco, de assento duro, porém, harmônico; que num banheiro destonalizado, ainda que de assento cinza almofadado.
Pobre Padilha, virgem de decorações e trabalhos do lar, não sabia que a tampa deve acompanhar a cor do bojo, nunca notara. São dessas coisas, tão óbvias, que se acha desnecessário ensinar aos filhos e estes são obrigados a aprender com o erro. Entrava em um dilema milenar; pensava que muitos outros já cometeram o mesmo deslize e indignava-se por não ter sido exortado. De certo, estes escondiam-se por vergonha do feito. Talvez escrevesse uma crônica sobre o caso – evitaria que outros provassem o amargor que então provava. Voltou o olhar àquela aberração. Não poderia sentar-se ali transgredindo todos os ideais de beleza. Viu-se na velha batalha entre conteúdo e aparência; entre vinho e taça. Retornou tampa e assento antigos a seu lugar e sentou-se. Antes desconforto que feiúra. Antes desprazer físico que estético.