sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Náufrago



Fora apresentado naquele longo inverno há dois tipos de pessoas: as que guardam lembranças e as que não as têm. Levaria isso por toda a vida, como um daqueles aprendizados que duram o bastante para passar adiante na nossa velhice. Descobriria que ao voltar nada seria como antes. Como poderia ser? Só não tinha como saber que aqueles meses de naufrágio eram suficientes para transformar até a paisagem do seu semblante. “-Não”. Teria se enganado na contagem. Teria se enganado com muitas coisas. E por mais familiar que lhe parecera, não tinha como distinguir os contornos: seu rosto barbudo, sua voz cansada, seus cabelos emaranhados por uma estranha corrente de vento que teria lhe perseguido desde a ilha. Mas principalmente não perfilhara mais os carinhos dela. Talvez nesse longo tempo perdido no mar ela tenha se entregado a outros. Quisera ter perguntado. Mas continuou calado, em silêncio, com medo que suas palavras soassem disformes. Lembrar-se-ia bem da última vez, antes de toda aquela distância. Nunca imaginara que aquele abismo encontraria também seus olhares. Não acreditaria se qualquer cartomante atormentada por seus presságios tivesse lhe dito anos antes que ali naquele mesmo instante um não reconheceria mais o outro. E como alheios, uma boca seca tocaria a outra afundada em lágrimas.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Sayonara


"Não estou te dedicando esse conto, na verdade estou falando de você."

Veloso



"Pudera", sempre fora dessas mulheres irremediavelmente mulheres, mesmo quando criança. E que bela criança! Dessas com uma certeza quase congênita das respostas que lá no fundo sabia que não tinha. E quando se via de noite, daquelas noites tão noites que parecia que qualquer ponto de luz fora se esconder em um espaço vazio de algum lugar longínquo, ela tinha medo. Não medo do escuro, mas da solidão que lhe imprimira todo aquele enegrecer no meio de tantos. Que estava confusa. É claro! Não era mais deste mundo e breve em breve a mandariam pra qualquer outra terra bem distante. Talvez Marte, talvez Saturno ou Júpiter. Plutão não, coitado, agora era anão. Fora rebaixado a menos que planeta. E agora? "Pudera" tanta dor, antes pelo menos ela conseguia imaginar o “fim” e agora poucas vezes pensara tantas vezes no “adeus”.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Pseudo-otimismo

(clique aqui para ouvir esta canção)

E pensar que há não mais que poucos dias
Tão inalcançável era um só “olá”
E já me pego a imaginar conhecer tuas manias
Tirar-te um sorriso e um outro olhar
Pois esse me assusta
Quero que olhes pra mim
Mas não olhes pra mim
Com essa cara de poucos amigos

Meu pseudo-otimismo diz que ainda vou receber
O amor que guardaste e nunca soubeste dar
Mas antes preciso desarmar você
Pra só então poder contra-atacar
E tuas armas de defesa
A minha artilharia
Não resistirão
E batalha a batalha vou ganhando a guerra

Conquistando o território aos poucos
Superando teus métodos loucos
Vez em quando, parando pra sonhar
E pensar, e pensar, e pensar, e pensar...

E pensar que há não mais que poucos dias
Tão inalcançável era um só “olá”.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Ruínas estreladas


Meu pai não ia ao Almeidão desde aquele trágico 4 x 4 contra o Ituano em 2003. Quando ele soube que eu iria sozinho na última quarta-feira contra o Guarabira, ligou surpreendentemente se oferecendo para me acompanhar. Fui buscá-lo em sua casa. No caminho, nós dois íamos calados; no som, Noel Rosa:

Não te vejo nem te escuto
O meu samba está de luto
Eu peço o silêncio de um minuto
Homenagem à história
De um amor cheio de glória
Que me pesa na memória


Lembrei-me dela, fora inevitável. Meu pai nem sonhava que ela estivera ali, no mesmo banco em que ele estava sentado, a me encher de beijos e ternuras. Para afastar tais lembranças, desliguei o som e comecei:

- Comprei um livro de Roberto Gomes, contista curitibano. O senhor conhece?
- Não.
- Contemporâneo e conterrâneo de Trevisan.
- É mesmo? Nunca ouvi falar. Mas Trevisan, esse sim. Você deve ter lido aqueles contos curtíssimos que mais parecem poemas ou pequenos diálogos. O cara é ousado tanto no aspecto formal quanto no conteúdo. Mas o tal Roberto é bom?
-Achei melhor que Trevisan.
-Duvido - desafiou.

Percebi que estava embriagado. Na entrada do estádio, ao saber o preço do ingresso, fez espetáculo:

-16 reais para ver uma pelada dessa? É um absurdo! Esse time do Botafogo só pode estar recheado de estrelas. Por que mulher só paga 5 reais? É melhor o cara ser gay então! – bradou, arrancando gargalhadas de quem estava ouvindo.

Saiu da fila para ver se encontrava um preço melhor, me deixando sozinho. Fiquei preocupado, pois no estado em que ele se encontrava seria confusão na certa. Tive vontade de chorar, porém ele apareceu de repente com o ingresso na mão, tendo conseguido economizar 1 real. Passamos pela catraca e, após a revista, soltou outra na frente do policial:

- O cabra pagar 15 reais para um macho desse ficar pegando no meu saco e na minha bunda é de lascar...

Quando subimos elogiou o gramado, os refletores e a implantação de novos assentos nas arquibancadas. Encontrou velhos conhecidos. Ao sentarmos, comprou amendoins, cujo gosto me fez lembrar da infância e de quando ele me levou pela primeira vez ao Almeida Filho. Para disfarçar a emoção, perguntei:

- Os refletores foram construídos na inauguração do estádio?
- Sim, foi no governo de Ernani Sátiro, que inclusive foi um bom romancista a exemplo de José Américo.
- E o senhor já leu a obra de Ernani Sátiro?
- Já. O seu avô dizia que Ernani conhecia bem as técnicas do romance. Muitos governadores da Paraíba também foram escritores.

Quando o jogo começou, havia um grupo de torcedores de pé à nossa frente. Para não perder o costume, meu pai gritou:

- Senta! Senta! Isto aqui não é o Maracanã!

Para evitar confusões, levei-o para um lugar mais vazio a despeito de sua resistência. Assistia ao jogo criticando o Botafogo. Nem o pênalti defendido pelo nosso goleiro nem o gol de Edmundo bastaram para animá-lo. Fim de primeiro tempo. Levantou-se para procurar refrigerante e o meu coração disparou preocupado outra vez. Voltou. Ficou calado durante todo o segundo tempo. No fim do jogo, perguntei:

-O que achou do time deste ano?
-Horrível. Vai ser peia de novo. Vocês são uns iludidos, pois se vangloriam por ganhar de 1x0 do Guarabira, um time de passadores de fome.Me desculpe, mas quem já viu Nininho, Lando, Chico Matemático e Magno arrebentarem não só contra essas porcarias do interior, mas contra Flamengos, Cruzeiros e Internacionais da vida, não se contenta apenas com isto que acabo de ver. Sou mal-acostumado. Espero que Guilherme não se decepcione tanto quando tiver consciência.

Eu não concordei, porém não respondi. Eu sou o Botafogo; herdei suas poucas glórias, seus muitos fracassos e seus sucessivos abandonos, mas nunca desisti de ser o que sou e meu pai sabia disso.

Na saída ele quis ir ao banheiro e me pediu para esperá-lo. Assim que entrou, meu celular tocou e me espantei ao ver que era ele que me ligava. Decerto estaria passando mal ou coisa parecida. Quando atendi, falou com sobriedade:

-Eu já estou em casa, pode ir em paz. Dirija com cuidado - e desligou.

Entrei no banheiro e não o encontrei. Aí eu chorei. Peguei o carro e fui sozinho para casa.