sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Náufrago



Fora apresentado naquele longo inverno há dois tipos de pessoas: as que guardam lembranças e as que não as têm. Levaria isso por toda a vida, como um daqueles aprendizados que duram o bastante para passar adiante na nossa velhice. Descobriria que ao voltar nada seria como antes. Como poderia ser? Só não tinha como saber que aqueles meses de naufrágio eram suficientes para transformar até a paisagem do seu semblante. “-Não”. Teria se enganado na contagem. Teria se enganado com muitas coisas. E por mais familiar que lhe parecera, não tinha como distinguir os contornos: seu rosto barbudo, sua voz cansada, seus cabelos emaranhados por uma estranha corrente de vento que teria lhe perseguido desde a ilha. Mas principalmente não perfilhara mais os carinhos dela. Talvez nesse longo tempo perdido no mar ela tenha se entregado a outros. Quisera ter perguntado. Mas continuou calado, em silêncio, com medo que suas palavras soassem disformes. Lembrar-se-ia bem da última vez, antes de toda aquela distância. Nunca imaginara que aquele abismo encontraria também seus olhares. Não acreditaria se qualquer cartomante atormentada por seus presságios tivesse lhe dito anos antes que ali naquele mesmo instante um não reconheceria mais o outro. E como alheios, uma boca seca tocaria a outra afundada em lágrimas.

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