quinta-feira, 28 de julho de 2011

CIDADE ANTIGA

Não voltara àquela cidade fazia tanto tempo que esquecera que quase todas as ruas eram curvas para um lado que ele não sabia subir. Pelo que havia entendido, passara-se dois anos, onze meses e sete dias daquela chuva ralinha, daquele céu nublado e daqueles dias sem estrelas. Achava pouco, apesar de não confessar em voz alta, “- o certo seria Deus enviar enfim uma tempestade que banisse do mapa toda aquela gente e suas casas de pracinhas tão tristes”. Mas não o fizera até então e acabara de esvair-se a última esperança de fazê-lo. Quando subia a ladeira íngreme de curvas que não sabia onde iam dar, tivera a certeza absoluta de que era tarde demais para pensar em regressar, para desistir. E a correnteza das recordações, das lembranças e das mágoas o jogou com tanta força para longe que quando conseguiu voltar, ainda atônito e ferido dos galhos que as águas levavam em sua dança de destruição, não teve o que dizer e baixou a cabeça e continuou andando. Anos depois, teria a infundada impressão de que as únicas coisas que se cruzaram naquele instante do passado foram seus olhos enevoados de vergonha. Concluiu, então, que ali foram feitos dois enterros: o de sua mãe de criação e o seu. Ensopado pela chuva, acordou em um pesadelo que mais ainda o afastaria o resto da vida daquele lugar. A cova onde sua mãe seria sepultada para todo sempre amém era uma poça de lama sete palmos abaixo da terra. E as tentativas de secar aquela moradia eterna e tardia eram seguidas de fracassos memorados por séculos na vila de farrapos do tempo. Após sete horas de tentativas funestas, a penúltima constatação fúnebre: o buraco cavado era menor do que os um metro e sessenta e dois centímetros, oitenta e cinco quilos e quase um século de vida. Quando a noite já caia, confundindo-se com a penumbra formada pelas nuvens que insistiam em ficar, um passo mal calculado jogou ao solo toda a sua infância dentro do túmulo, mas o choque com o chão antes do tempo abriu parcialmente o baú de madeira e deixou revelar de seu claustro, estirada para seu lado, a mão fria e branca que tantas noites lhe botaram para dormir e o pranto contíguo com a chuva para que ninguém percebesse sua dor. E chegou a sua derradeira lição: os mortos também choram.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Fitos, meus vis, em teus olhos de mar

A uma ingrata

"Whoever loved that loved not at first sight?"
(Shakerpeare - As You Like It)

Fitos, meus vis, em teus olhos de mar
De súbito, um desejo me aprisiona
Em fera paixão que a antiga abandona
Pra que tu abarques o meu parco amar

Tolos vão, por incrédulos, julgar
Ser efêmero o ardor que me emociona
Mas com os encantos que ostenta a dona
Escusado seria mais que um olhar

A propósito, em mim, não foi o amor,
Como nunca em ninguém fora, nascido
Este não vem senão de um predispor

Já se nasce com ele, adormecido
Semente a espera de tornar-se flor
Ao vir do anjo a quem fora prometido

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Meus confusos olhos espreitam ciosos

"Minha dor é te ver por aí
Nessa leveza insustentável de ser"
(Tunai)

Meus confusos olhos espreitam ciosos
Toda languidez a que circunscreve
Teu pálido corpo, de traço leve,
De mãos delicadas, de pés mimosos

Sorvem-lhe o leite, meus lábios ditosos
Dos cândidos seios, flocos de neve
Mas finda o prazer de meu sonho breve
Num alvorecer de raios queixosos

Dou-me conta da onírica diabrura
E então levanto, em favor da inocente,
Contra mim mesmo, minha própria fúria

Atormenta-me ver que uma alma pura
Possa despertar querer tão ardente...
Tanta lascívia... tamanha luxúria.

terça-feira, 5 de julho de 2011

A Minca Não Tem Coração

(clique aqui para ouvir esta canção)

Nu
Deitado a cama
Choro no meu quarto
Sem ninguém ao lado
Só meu violão

Faço verso
Faço prosa
Poesia
Faço melodia
E nada que me faça bem

Não há razão em lutar
Se o que desejo não há

A Minca não tem coração
A Minca não tem coração
A Minca não tem coração

Me entrego ao sono
O ensaio da morte
Sonhando em afinal
Entrar em cartaz

Vejo Hades
Em suas belas vestes negras
Displicentemente andando
Pelo meu quintal

Transponho o avesso do muro
Pra continuar no escuro

A Minca não tem coração
A Minca não tem coração
A Minca não tem coração

Não sei mais se durmo
Se só deliro
Ou se parti já dessa
Pra uma melhor

Quando acho
Que mais nada
Tenho a dar
Me vem então a madrugada
E surge essa canção
Pra ti
Pra me mostrar:
Que pena...
Não tô morto não